Almofadinhas

No ano de 1919, meses após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um concurso incomum mobilizou a cidade de Petrópolis (RJ). As notícias destacavam que rapazes elegantes haviam se reunido para definir quem se sobressaía na arte de bordar e pintar almofadas trazidas da Europa, especialmente para a ocasião. O escritor Raimundo Magalhães, pesquisador e conhecedor dos costumes da época, conta que o termo “almofadinha” teria surgido naquele momento para designar “tipos afetados, cheios de salamaleques e não-me-toques”.  Quase um século depois três artistas, Fábio Carvalho, Rick Rodrigues e Rodrigo Mogiz, subverteram a nomenclatura utilizada para ridicularizar aqueles homens que bordavam na Região Serrana Fluminense e se organizaram em um coletivo artístico que possui como foco de interesse o desenvolvimento de poéticas visuais centradas no bordado.

No ano de 2017, o coletivo apresentou em Belo Horizonte uma exposição que revelava ao público não somente suas obras em bordado, mas também seu pensamento e posicionamento diante de tão grandes desafios. O grupo seguiu produzindo, cada qual em seu lugar – cada um dos artistas vive em uma cidade diferente: Rio de Janeiro, João Neiva e Belo Horizonte –, apresentaram seus trabalhos coletivamente ou individualmente em outros espaços e agora retornam à cidade para apresentar alguns trabalhos inéditos e uma exposição com outro recorte e curadoria. Desde então, o tecido social em todo país foi intensamente desgastado pela polarização política, pela crise econômica e, sobretudo, pelo avanço da lógica individualista que rege o tempo presente. Por esta razão é possível perceber, no contexto da exposição, mudanças significativas nos modos de apresentar os trabalhos, seus temas e suportes. Se por um lado as identidades e visualidades parecem permanecer, os sujeitos e contextos sofreram transformações significativas. 

Desde o episódio de Petrópolis em 1919, infelizmente, muito preconceito e ignorância permanecem. Mais do que nunca, a perseguição e censura aos comportamentos tidos como desviantes de um certo padrão conservador – aquele que cumpre com os estereótipos impostos por uma sociedade retógrada, da “moral e bons costumes” – avançam em marcha assustadora. Para muitos ainda parece estranho, ou mesmo emasculante, quando homens se dedicam a atividades normalmente percebidas, pela maioria, como “coisa de mulher”: o ato de bordar lenços, paninhos de mesa e almofadas, pintar pratos de porcelana, construir objetos delicados com flores e borboletas, discutir questões de afeto, memória e sexualidade. Para os padrões de pensamento limitado, estas atividades humanas são impossíveis de coexistir lado a lado a sua noção de masculinidade. No contexto social geral, ao menos desde a Idade Média homens que bordam, certamente, não são uma novidade. No meio artístico tampouco. Bispo do Rosário e Leonilson, figuram como exemplos recentes de artistas que consolidaram as suas poéticas por meio dos bordados. Este também é caso de Fábio Carvalho, Rick Rodrigues e Rodrigo Mogiz. 

Nesta exposição cada uma das obras reflete os momentos de sua própria criação e discutem as situações em que se encontram os artistas, constituindo através de suas formas, imagens e cores, narrativas singulares. No caso de Fábio Carvalho e Rick Rodrigues, por exemplo, percebemos que as armas – tema tão em voga no Brasil recente – aparecem nos trabalhos operando como signos das violências reais e simbólicas sobre os corpos e existências não hegemônicas. Já nos trabalhos de Rodrigo Mogiz, a cor é destacada e ganha outras funções, uma vez que opera como veículo de informação e definição. Camuflagens e arco-íris, figuras e textos, utensílios de bordar e objetos prosaicos passam a operar nesta exposição como agentes discursivos, ou melhor, como elementos que ratificam a diversidade, a não violência e a pluralidade – de pensamento e de existência – como sendo formas de interação com o mundo. Por esta razão os trabalhos dos três artistas estão apresentados na galeria sem uma delimitação exata, como espaços a serem ocupados por um ou outro. Cada obra apresenta a outra, completando aquilo que coletivamente é construído. Como discursividade unívoca do coletivo, esta exposição trata do presente, reflete o passado e mira outros futuros possíveis, em que pesem mais as pluralidades, os saberes coletivos, a horizontalidade das relações e a valorização do afeto como um instrumento efetivo de transformação perene do mundo.   

Shannon Botelho
2024

texto para a exposição "Almofadinhas"
Viaduto das Artes - BH | MG | fev/mar 2024